Lendo Diacov menstruada
a repetição desestabiliza a linguagem e desestabiliza o corpo
Um dos traços marcantes nos poemas de Carla Diacov é a repetição. Em seus livros, a sequência dos poemas parece evocar as recitações de mantras capazes de induzir a estados alterados de consciência. No entanto, o transe não se completa porque as palavras repetidas são deslocadas, reconfiguradas em imagens inusitadas e cenas nonsense. A primeira reação do cérebro treinado pela linguagem é buscar um sentido, tentar construí-lo, no entanto, a sonoridade e o ritmo estruturam o poema de forma que não precisamos de uma “compreensão” para sermos impactadas pela poesia de Diacov.
Busco, além do diálogo do não-compreendido, movimentos que tomem distância das minhas características últimas, recentes. Muitas vezes construo o poema com base num desejo de que o leitor se coloque em observação ou numa troca de lugar: que saiba (ou duvide!) o que me levou a derramar água ali ou que derrame a água comigo ou que derrame a água de sua própria maneira… Que a água o surpreenda, ignore a lei da gravidade, ou que a água seja nuvem. Carla Diacov em entrevista ao Suplemento Pernambuco.
Uma possibilidade para se aproximar destes poemas é abrir mão de uma ideia de entendimento e confiar no ouvido. Em A metáfora mais gentil do mundo gentil (2016) a poeta usa a palava “banheiro” em diferentes poemas, embora o espaço da casa e atividades domésticas se façam presentes no universo do livro. Seria o banheiro a metáfora do título? Ou as imagens recorrentes apenas chamam a atenção para diferenças entre o público e privado, para como um cômodo importante visto como banal (até precisarmos de um)? Na sequência de poemas o banheiro é um lugar onde o corpo está exposto, onde é possível chorar, pensar, se limpar, multiplicam-se as funções e possibilidades até não fazermos mais ideia de que banheiro a poeta está falando.
Canja
em expansão
o ódio o amor
ainda que nada nada
em água em expansão
um banheiro em pleno ódio
onde jaze teu rosto quando
fundo aqui um amor cheio de ódio
o banheiro no ódio
você na banca de jornais
eu a ronronar alhos curry no banheiro
ódio e preces
um banheiro para o ódio que
o ódio que se come cru
abrir um banheiro para o ódio
ao ódio tudo porque o ódio
busca toda a satisfação o gosto de tudo
você na banca de jornais
eu na briga onde espero por ti
temperos gosto receitas
um deus faria o mesmo eu sei
pois deus faria o mesmo e fez
você na banca de revistas com ornatos para interiores
um banheiro todo para o ódio que te espera
há anos
há gerações
afio os punhos empunho a faca
como cortar um ovo meu deus do céu dos interiores
enquanto o jornaleiro faz lucro faço banheiro
quem nunca
jesus maria e josé
esfaqueou uma galinha
morta na pia borrada de creme dental
não sabe o que é o ódio de um amor tão macio
suculento
quem nunca meteu alhos pelos furos na bendita
quem nunca escorregou junto do choro da baba
quem nunca se machucou num tanto amor
quem nunca morreu no banheiro cravado no ódio da espera
amor
quem nunca leu nesses olhos a manchete ordinária
quem nunca amolou um garfo nos dentes do todo ódio
tamanho banheiro em pleno ódio
preces
um banheiro na cozinha em pleno ódio amor
em expansão
se esse banheiro fosse um cofre
se todo meu ódio fosse esse ladrão
A leitura de único poema é pouco para dar conta da sensação de instabilidade, uma vez que as várias repetições em poemas diferentes reforçam a desorientação. A reincidência de uma palavra expõe a relação frágil entre significante e significado, mas nos torna sensíveis ao som. Em vários momentos me peguei relendo os poemas em voz alta para perceber como eles soavam.
Em um depoimento no curso ‘Literatura de mulheres no Brasil’ publicado em Crítica e tradução e tradução, Ana Cristina Cesar fala sobre “sacar o que é poesia: a poesia é um tipo de loucura qualquer. É uma linguagem que te pira um pouco, que meio te tira do eixo”. Essa foi a definição que me veio à mente diante do trabalho de Diacov. Me deparar com o estranhamento, a incerteza, um certo desconforto, e ao aceitá-los, me deixar ser tirada do eixo.
O espaço doméstico — seus cômodos, móveis, objetos — está presente nos diversos livros da autora. É possível pensar em associação entre corpo/casa, como Hilda Hilst pontuou na Ode descontínua, A minha casa é guardiã do meu corpo/ E protetora de todas minhas ardências, no entanto, a familiaridade é subvertida, no momento olhos, mãos, bocas, cadeiras, garfos, surgem nos versos sem a menor relação os usos feitos deles.
A linguagem desestabilizante de Diacov nos convida a observar ao redor sem as definições, relações de causa e efeito, e imagens recorrentes que saturam nossos sentidos.
.para Isaura.
a vênus de willendorf tem
a capacidade aberta e usada desde sempre
especialistas dizem
a vênus de willendorf
era usada em ritos de fertilidade
pequena usável
era usada como amuleto era
usada como objeto de limpeza abjeto
introduzido na
capacidade das vênus ordinárias era
usada como peso de segurar porta aberta
era usada para mexer alimentos ritualísticos
era usada na fervura dos alimentos mais ordinários
usada na terra era plantada antes dos alimentos
usada bolota aromatizadora pingava-se
óleo de casca de árvore ordinária na capacidade
da vênus de willendorf
que ficava ali ao uso do recinto
a vênus de willendorf era usada
dizem os especialistas
usada como socador de ervas
usada como amplificadora da pequenez
das outras vênus
todas ordinárias
usada para amaciar
carnes relações couros discussões
pois basta olhar para a vênus de willendorf
notável pequena usável
hojendia os especialistas usam
a vênus de willendorf
em suas especialidades
a vênus de willendorf jamais deixou de ser usada
Se para os cientistas o corpo da mulher se limita às suas funções (sociais) ou capacidades (reprodutivas), a poeta nos traz essa imagem antiga, totalmente fora dos padrões de beleza e abundância contemporâneos para se aproximar de Isaura, personagem do romance O filho de mil homens, desprezada e solitária por causa de suas escolhas de como dispor de seu corpo e seu prazer.
Se pensarmos nas ideias patriarcais recorrentes sobre o corpo feminino, como misterioso, sujo, emocional, lunático, histérico, ao embaralhar a linguagem Diacov, trata o escatológico como parte da vida se opondo ao uma visão asséptica, traz o improvável para dentro de casa e nos convida a reparar na sensibilidade de galinhas, gatos e burricos. Seus poemas dedicam uma atenção ao que é esquecido nas narrativas oficiais, se debruça sobre as vidas consideradas menos importantes.
Ler Carla Diacov é abraçar o desconhecido. Nas palavras e nos outros. É o tipo de mergulho em correntezas que podem nos levar a lugares inesperados, mas emergimos destas águas das um pouco mais alertas e revigoradas.